o meu frigorífico

Posted in Uncategorized with tags on January 12, 2024 by teresa

Hoje, vendemos a casa. Assinámos os papéis, trocámos as piadas de circunstância, muitos parabéns aos felizes compradores, que sejam felizes “na nova fase”. A nossa “nova fase” durou menos de um ano. Depois, fui ao supermercado porque na minha casa, que não é minha, o frigorífico está vazio e não há forma de ficar satisfeita com ele. Não sei que obsessão é esta. Sempre que vou a casa da minha mãe, gosto de abrir o frigorífico e deliciar-me com as prateleiras cheias. Não é que o meu tenha falta de iogurtes – compro aquilo que acho que vou comer e que não vou deixar estragar. Há ali qualquer coisa no gesto de abrir o frigorífico da minha mãe, a sensação de que posso ter 15 anos e, egoisticamente, servir-me de um iogurte sem ter de contar quantos faltam para ter de voltar ao supermercado.

Vidas paralelas

Posted in Uncategorized on October 17, 2023 by teresa

Eu e a N. crescemos juntas. Éramos melhores amigas e passávamos muito tempo fora das aulas a deambular pelas ruas de Macau. Tanto ela como eu, de vez em quando, na hora de almoço do liceu, íamos pedindo trocos aos nossos amigos mais velhos para ver se nesse dia dava para irmos almoçar ao McDonald’s em vez da comida da cantina que era obrigatório desprezar. “Fumámos” juntas cigarros de chocolate no jardim junto à escola, andámos de autocarro sem pagar, entrávamos sorrateiramente nas lojas de máquinas quando não tínhamos idade à procura de moedas esquecidas nos tabuleiros, roubámos pacotes de batatas fritas da mercearia ao pé da escola. Ficávamos na rua até tarde e eu achava que os pais dela eram os melhores do mundo porque deixavam-na fazer tudo enquanto os meus eram o oposto.

As minhas primeiras saídas à noite foram com ela. Comecei por dizer em casa que ia dormir a casa dela. Quando se tornou óbvio para o meu pai que isso era apenas uma desculpa para sair, foi ao pé dela que telefonei para casa a explicar que não iria voltar às horas que ele queria e que o melhor seria deixar-me ir à minha vida e “fazer o mesmo que as outras pessoas da minha idade”.

Não sei quando é que deixámos de estar tanto juntas ou porquê. Eu devo ter arranjado outra amiga e ela também. Lembro-me de uma rapariga mais velha que veio para a nossa turma e que tinha a mania que era fixe. A N. simpatizou com ela mas eu não. Talvez porque eu tinha irmãos mais velhos e sabia que eles não eram assim tão interessantes.

Sei que ela continuou a sair muito mais do que eu, começou a faltar mais às aulas e a ter piores notas.

Sempre que falávamos, eu achava que a vida dela era muito mais interessante do que a minha. Ia sabendo que discutia muito com a mãe, mas não me preocupava muito com isso. Em minha casa também havia muitas discussões. Ela tinha sempre as roupas da moda, conhecia as canções certas, enquanto eu já demonstrava alguma dificuldade em acompanhar as tendências.

De repente, a N. foi enviada para Portugal, para viver com o pai em Almeirim, os pais tinham-se separado. A mãe dizia que não conseguia tomar conta dela. Perdemos o contacto por uns anos e só voltámos a falar uns anos mais tarde quando também eu fui viver para Portugal e arranjámos o telefone de casa uma da outra.

Da primeira vez que nos vimos em Lisboa, nas férias de verão antes do secundário, fomos até ao Intendente porque a N. queria fumar haxixe. Andámos por lá de um lado para o outro e ela ia-me explicando as movimentações dos dealers e dos seus clientes. “Este não dá porque só tem drogas duras”. “Olha, aquele vai injectar”. Pela primeira vez, vi alguém a injectar-se. Foi uma imagem que ficou comigo para sempre. Pareciam pessoas normais.

As aulas começaram e voltámos a afastar-nos. Nas redes sociais que entretanto apareceram, trocámos algumas mensagens. Eu cheguei a ir visitá-la uma vez e lembro-me de ficar surpreendida com o pouco movimento que havia em Santarém a um domingo. Eu tinha crescido em Macau, tinha visitado algumas cidades na Ásia, menos na Europa. Já tinha estado no Porto. Imaginava que Santarém, como capital de distrito, seria mais uma cidade como as outras que tinha visto. Afinal, parecia um deserto.

A N. já não ligava à escola, tinha chumbado algumas vezes, os dias passavam por ela sem grande rumo. Eu achava sempre que ela ia acabar por retomar um caminho, mas isso nunca aconteceu. Nunca percebi porque é que o percurso dela foi tão diferente do meu ou do dos outros nossos amigos.

A certa altura, o pai dela enviou-a de volta para o outro lado do mundo, para ir viver com a mãe outra vez. Quando voltei a vê-la, muitos anos depois, em Macau, achei-a demasiado magra. Ela já era magra, mas conseguia sempre ficar ainda mais pequena. Ela sorriu da mesma forma que sorria quando éramos mais novas, mas lembro-me que nada do que disse fazia sentido e eu fiquei confusa. Ela estava a fazer um esforço para me mostrar que estava tudo bem. Teria sido sempre assim?

A irmã um ano mais nova vivia fechada em casa, ainda a recuperar de uma depressão. A mãe morreu uns anos depois, penso que de cancro.

Ainda hoje penso nela de vez em quando. Ainda hoje me pergunto o que é que lhe falhou, quando e porquê. E o que é que me salvou a mim?

O meu reino por uma casa

Posted in Uncategorized on June 30, 2023 by teresa

Não sei há quantos anos falamos da crise da habitação, mas parece que há temas que são recorrentes desde que comecei a trabalhar. Por exemplo, um dos primeiros trabalhos que fiz apresentava a “última” solução para o novo aeroporto de Lisboa, na OTA. Lembro-me de filmar com interesse a maquete apresentada, escutar os argumentos para a localização, etc. Mas eu já entrei décadas depois desta discussão começar e ela ainda decorre. Hoje já só consigo revirar os olhos com mais uma proposta.

A habitação é outro tema que apenas parece agravar-se. Parece que os nómadas digitais e a web summit acentuaram todos os problemas, mas lembro-me de um trabalho que fiz, já não sei precisar quando, mas penso que terá sido nos anos da troika. Uma pessoa com quem me tinha cruzado num convívio de amigos uns tempos antes, de repente passou a ser um dos protagonistas num trabalho sobre habitação. Tinha-se mudado para a margem sul e deixara de aparecer. Contou que a distância o fechou na sua rotina. Deixou de ser visto e acabou por ficar esquecido. A viagem já não era tão fácil e tinha custos que ele não podia acumular.

Claro que há milhares de pessoas que vivem na margem sul e que fazem o percurso até Lisboa todos os dias e mantêm a sua rotina e têm os seus amigos. Mas foi aquela disrupção que mudou tudo.

Lembro-me dele quando vejo tantas pessoas questionarem porque é que as pessoas precisam de morar em Lisboa. É claro que ninguém pode querer isso. Hoje são luxos para o estrangeiro. Espero que ele tenha conseguido, entretanto, encontrar a sua comunidade.

Aguenta coração

Posted in Uncategorized on June 20, 2023 by teresa

Parece que todas as músicas do mundo falam de amor, tantos biliões e biliões de pessoas e algo que era suposto ser simples – não tem nada de simples, eu sei, não tenho voto na matéria, claramente – continua a atormentar e a ocupar tanto espaço em todo o lado a toda a hora. Porque é que não se escrevem músicas sobre outros assuntos?

[andava a pensar nisto quando fui a um concerto do Jorge Palma e ele cantou algo sobre plantar alfaces em Marte e acho que tive a minha resposta]

[correção: para ser exata, a canção é sobre cultivar plantas na lua. Mas, who cares?]

Cá em baixo

Posted in acasos with tags on June 9, 2015 by teresa

“Os pássaros voavam no céu, como se voassem num mundo mais justo. Corriam nesse mundo só de claridade, nesse céu. Voavam felizes. As nuvens ainda mais acima, mais longe de tudo, mais perfeitas, eram pequenas manchas brancas a mostrar que a lonjura do céu é tão infinita. Cá em baixo, a terra, este mundo e dezenas de pessoas talvez preocupadas, a mexerem-se sen saírem do lugar. Passava uma aragem pelos campos, pelas pedras, pelas moitas, pelas ervas miúdas, deslizava pela superfície da barragem. Lá muito ao fundo, o sol quase tocava o cabeço do outro lado da barragem. A luz estendia-se pelas águas, pela terra, e batia naquela multidão inquieta, e estendia-lhes as sombras sobre a terra. Estendia-lhes o desassossego.”

[Cal, José Luís Peixoto]

Tias (muito) modernas

Posted in Uncategorized on June 4, 2015 by teresa

“Continuo preocupada com as mangas”, disse a tia Charlie. “Será que devia encurtá-las seis milímetros?”

Depois do café, voltou à sala com essa intenção, alinhavando apenas uma das mangas para ver como ficaria. Chamou-me para voltar a provar o vestido, e quando eu o vesti verifiquei, surpreendida, que ela tinha o olhar fixo no meu rosto, em vez de na manga. Tinha algo fechado na mão, que me queria dar. Eu estendi a mão e ela sussurrou, “Toma.”

Quatro notas de cinqueta dólares.

“Se mudares de ideias”, disse ela, ainda num sussurro trémulo e apressado. “Se decidires que não queres casar, vais precisar de algum dinheiro para fugir.”

Quando disse se mudares de ideias, eu pensei que ela estava a brincar, mas quando chegou ao vais precisar de algum dinheiro percebi que falava a sério. Fiquei paralisada no meu vestido de veludo, sentindo uma dor nas têmporas, como se tivesse a boca cheia de algo demasiado frio ou demasiado doce.

[A Vista de Castle Rock, Alice Munro]

Ir para dentro, lá fora

Posted in acasos with tags , on September 17, 2014 by teresa

“Sigismundo Canastro vem de cumprir a sua obrigação, é só isso e nada mais. E como, apesar da gravidade dos passos a dar, tem seu tanto de malicioso e alegre, consoante neste relato já ficou demonstrado por mais de uma vez, foi passar à porta do posto da guarda e, vendo-a fechada e as luzes apagadas, chegou-se ao muro e mijou a seu prazer e regalo como se mijasse em cima de toda a corporação. São criancices de homem velho, já não lhe vai servindo a picha para muito mais, mas para isto ainda, este belo regueiro que procura caminho entre as pedras, quem me dera ter litros de urina para ficar aqui a mijar a noite inteira (…)”.

[Levantado do Chão, José Saramago]

Há escritores que são como lugares e que nos fazem sentir em casa onde quer que estejamos. Escreverem em português é essencial para mim. Posso gostar muito de outros escritores, mas nunca conseguirei dizer home e sentir a mesma familiaridade que encontro em lar. Algum humor e ironia também são necessários. Duvido que seja possível contar a natureza humana sem estes ingredientes. Saramago, até agora, nunca desiludiu.

Círculo perfeito

Posted in acasos with tags on October 5, 2013 by teresa

“E, no entanto, esse medo e a sua exacta enunciação – “apodrecer por dentro” – não só tinham tomado conta da cabeça do meu amigo, como o psiquiatra sabia que isso ia acontecer. Sabia-o não por ser um mágico capaz de adivinhar os pensamentos do meu amigo, sabia-o porque isso estava escrito nos compêndios de medicina. E quem o tinha escrito não tinha sido nenhum vidente. Nem um profeta. Muito menos Deus. Quem o tinha escrito tinha sido uma pessoa que se limitara a estar atenta a pessoas que adoeciam com a doença de que o meu amigo adoecera, uma pessoa que tinha testemunhado e registado este facto que agora me aterrava: se adoecermos com a doença com que o meu amigo adoecera passamos todos a pensar de maneira semelhante.

– Eu?

Isto significa que nos tornamos indistintos ou será que somos indistintos?”

[Em Busca D’eus Desconhecidos, Dulce Maria Cardoso]

A hora estranha

Posted in acasos with tags on January 22, 2012 by teresa

“Elizabeth teve um ligeiro calafrio e ele voltou-se para ela. “Tens frio, querida? Vou buscar a manta dos cavalos, para te tapar os joelhos.” Ela tremeu outra vez, já não tão bem como da primeira, porque estava a fazer de propósito.

“Não tenho frio”, disse ela, “mas a hora é tão estranha. Gostava que falasses comigo. É uma hora perigosa.”

Ele pensou no bode. “Que queres dizer? Perigosa?” Agarrou-lhe nas mãos e pousou-as sobre os joelhos.

“Quero dizer que há o perigo de nos perdermos. É a luz a sumir-se. Pareceu-me de repente sentir que me espalhava e desvanecia como uma nuvem, misturando-me com tudo o que me rodeia. Sentia-me bem, Joseph. Depois passou o mocho; e tive medo de me misturar demasiadamente com os montes e nunca mais poder voltar a encontrar-me na pessoa de Elizabeth.

“É só a hora”, tranquilizou-a ele.”

[A Um Deus Desconhecido, John Steinbeck]

uma valsa

Posted in acasos on January 13, 2012 by teresa

Escondia “a palavra” no bolso, como quem guardava o melhor segredo de todos os tempos. Não deixava ninguém espreitar e houve dias em que esta missão foi muito complicada. Os rumores correm tão depressa que três dias depois de ter metido “a palavra” no bolso, já não podia andar distraída na rua sem que alguém tentasse ir-lhe ao bolso. Era absurdo, insistia, afinal, “é só uma palavra”. “Então mostra-a”, exigiam, como se todos tivessem o direito de saber o que ela não queria dizer a ninguém.

Agora tudo era mais fácil. O mundo dividira-se em duas legiões, com espiões dos dois lados: os que defendiam o segredo, porque achavam que ela tinha o direito a ele, e os que tentavam descobrir “a palavra”, gastando para isso todas as suas forças, meios e imaginação. A palavra continuava escondida dentro do bolso. O bolso tinha sido guardado dentro de um cofre colocado no meio de um campo minado. O campo ficava numa gruta a 2 643 quilómetros de profundidade.