Vidas paralelas

Eu e a N. crescemos juntas. Éramos melhores amigas e passávamos muito tempo fora das aulas a deambular pelas ruas de Macau. Tanto ela como eu, de vez em quando, na hora de almoço do liceu, íamos pedindo trocos aos nossos amigos mais velhos para ver se nesse dia dava para irmos almoçar ao McDonald’s em vez da comida da cantina que era obrigatório desprezar. “Fumámos” juntas cigarros de chocolate no jardim junto à escola, andámos de autocarro sem pagar, entrávamos sorrateiramente nas lojas de máquinas quando não tínhamos idade à procura de moedas esquecidas nos tabuleiros, roubámos pacotes de batatas fritas da mercearia ao pé da escola. Ficávamos na rua até tarde e eu achava que os pais dela eram os melhores do mundo porque deixavam-na fazer tudo enquanto os meus eram o oposto.

As minhas primeiras saídas à noite foram com ela. Comecei por dizer em casa que ia dormir a casa dela. Quando se tornou óbvio para o meu pai que isso era apenas uma desculpa para sair, foi ao pé dela que telefonei para casa a explicar que não iria voltar às horas que ele queria e que o melhor seria deixar-me ir à minha vida e “fazer o mesmo que as outras pessoas da minha idade”.

Não sei quando é que deixámos de estar tanto juntas ou porquê. Eu devo ter arranjado outra amiga e ela também. Lembro-me de uma rapariga mais velha que veio para a nossa turma e que tinha a mania que era fixe. A N. simpatizou com ela mas eu não. Talvez porque eu tinha irmãos mais velhos e sabia que eles não eram assim tão interessantes.

Sei que ela continuou a sair muito mais do que eu, começou a faltar mais às aulas e a ter piores notas.

Sempre que falávamos, eu achava que a vida dela era muito mais interessante do que a minha. Ia sabendo que discutia muito com a mãe, mas não me preocupava muito com isso. Em minha casa também havia muitas discussões. Ela tinha sempre as roupas da moda, conhecia as canções certas, enquanto eu já demonstrava alguma dificuldade em acompanhar as tendências.

De repente, a N. foi enviada para Portugal, para viver com o pai em Almeirim, os pais tinham-se separado. A mãe dizia que não conseguia tomar conta dela. Perdemos o contacto por uns anos e só voltámos a falar uns anos mais tarde quando também eu fui viver para Portugal e arranjámos o telefone de casa uma da outra.

Da primeira vez que nos vimos em Lisboa, nas férias de verão antes do secundário, fomos até ao Intendente porque a N. queria fumar haxixe. Andámos por lá de um lado para o outro e ela ia-me explicando as movimentações dos dealers e dos seus clientes. “Este não dá porque só tem drogas duras”. “Olha, aquele vai injectar”. Pela primeira vez, vi alguém a injectar-se. Foi uma imagem que ficou comigo para sempre. Pareciam pessoas normais.

As aulas começaram e voltámos a afastar-nos. Nas redes sociais que entretanto apareceram, trocámos algumas mensagens. Eu cheguei a ir visitá-la uma vez e lembro-me de ficar surpreendida com o pouco movimento que havia em Santarém a um domingo. Eu tinha crescido em Macau, tinha visitado algumas cidades na Ásia, menos na Europa. Já tinha estado no Porto. Imaginava que Santarém, como capital de distrito, seria mais uma cidade como as outras que tinha visto. Afinal, parecia um deserto.

A N. já não ligava à escola, tinha chumbado algumas vezes, os dias passavam por ela sem grande rumo. Eu achava sempre que ela ia acabar por retomar um caminho, mas isso nunca aconteceu. Nunca percebi porque é que o percurso dela foi tão diferente do meu ou do dos outros nossos amigos.

A certa altura, o pai dela enviou-a de volta para o outro lado do mundo, para ir viver com a mãe outra vez. Quando voltei a vê-la, muitos anos depois, em Macau, achei-a demasiado magra. Ela já era magra, mas conseguia sempre ficar ainda mais pequena. Ela sorriu da mesma forma que sorria quando éramos mais novas, mas lembro-me que nada do que disse fazia sentido e eu fiquei confusa. Ela estava a fazer um esforço para me mostrar que estava tudo bem. Teria sido sempre assim?

A irmã um ano mais nova vivia fechada em casa, ainda a recuperar de uma depressão. A mãe morreu uns anos depois, penso que de cancro.

Ainda hoje penso nela de vez em quando. Ainda hoje me pergunto o que é que lhe falhou, quando e porquê. E o que é que me salvou a mim?

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